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O Guggenheim de Nova Iorque vendeu 320 000 bilhetes para a exposição em que celebrou a arquitectura de Frank Gehry, mais do que para qualquer outra exposição nos seus 50 anos de história. Chamou-lhe uma retrospectiva, mas a realidade, bem evidente em toda a extensão da vertiginosa espiral ascendente no centro do museu, foi nada mais nada menos que a coroação de Gehry por Thomas Krens, o director do Guggenheim, como “o mais importante arquitecto do nosso tempo”. Numa mistura desconfortável de informalidade e auto-complacência, Krens comparou simultaneamente Gehry a Michael Jordan e a Frank Lloyd Wright – uma comparação talvez calculada para se destinar tanto a Krens como a Gehry. Se Gehry era, realmente, o mais importante arquitecto do mundo, isso fazia claramente de Krens o mais importante patrono da arquitectura.
     Em 13 anos no Guggenheim, Krens transformara um museu de escala modesta, com uma dotação e uma colecção que eram uma pequena fracção das de instituições muito menos conhecidas, num circo de arte global, posicionado conceptualmente algures entre o casino Bellagio, em Las Vegas, e Louis Vuitton, graças em grande parte ao poder de atracção da arquitectura sensacionalista de Gehry. Krens fizera de Gehry uma estrela e, por sua vez, Gehry tornou Krens o director de museu mais comentado do mundo. Seja como for, nenhuma instituição viera a encarnar mais o papel da cultura na economia contemporânea, e os usos que lhe podiam ser dados, que o Museu Guggenheim.
     Krens tinha atrás de si o surpreendentemente bem sucedido estabelecimento da colónia do Guggenheim em Bilbau, e o lançamento de postos avançados, ainda que não tão impressionantemente, em Berlim e Nova Iorque. Alheio à implosão da bolha do mercado da Internet, presidira ao lançamento de mais de 20 milhões de dólares do Guggenheim.com no início desse ano. Contando com a ajuda do antigo editor da Martha Stewart Living, tratava-se de um website comercial destinado a enriquecer o museu. A abertura sincronizada de outros dois Guggenheim num casino de Las Vegas, representando uma colisão entre as culturas alta e baixa muito além da paródia, estava iminente. E Krens falara já da abertura de outras franquias em Tóquio e Taiwan, Rio de Janeiro e Salzburgo, e S. Petersburgo e Edimburgo.
     Mas a habilidade de Krens em desafiar as leis da gravidade nunca mais seria a mesma depois da exposição Gehry. No espaço de um ano, o presidente do conselho de curadores do Guggenheim ameaçava publicamente despedir Krens se este não conseguisse equilibrar as finanças da instituição. O orçamento foi cortado, foram eliminados 100 postos de trabalho e houve exposições canceladas ou adiadas. O Guggenheim de Las Vegas, uma caixa de aço vermelho enferrujado concebida por Rem Koolhaas e situada nas entranhas do casino Venetian, encerrara após uma existência humilhantemente curta. O Guggenheim do SoHo fora engolido por uma nova loja Prada, e a Guggenheim.com sumira-se num dispendioso flash de pixéis.
     O enorme novo Guggenheim projectado por Gehry para o East River foi suspenso, e, posteriormente, acabou por ser cancelado. E Bilbau assistiu a um colapso no número de visitantes que levou a British Airways a pôr fim ao seu voo directo de Londres.
     A explicação habitual para esta sequência catastrófica de reveses é sugerir que o Guggenheim foi de algum modo apenas mais uma vítima do período trágico que se seguiu aos ataques às torres gémeas, que tiveram lugar dez dias após o encerramento da exposição. Mas o museu estava já em grandes apuros sem a ajuda da al-Qaeda. Todos os sinais disso se encontravam presentes na exposição Gehry. Na sua arrogância, e na sua obsessão narcisista, a exposição revelou uma instituição possuída de uma sede de glória alimentada pelo ego. O seu director e os curadores estavam a pôr a nu, estrondosamente, o pior de si, distraindo o Guggenheim do seu auto-proclamado fim cultural.
     Como um jovem e agressivo criador de moda trazido para salvar uma casa de costura a atravessar dias maus, a primeira medida de Krens como director foi expurgar da linha de produtos do Guggenheim o que era datado ou passara de moda, em favor do que fosse actual. Vendeu Chagall e Modigliani e comprou a colecção de arte conceptual de Panza di Biumo.
     E contratou um novo arquitecto para provocar um grande estrondo com as suas boutiques emblemáticas.
     Gehry é um Frank Lloyd Wright pouco verosímil. Tem uma ironia autodesaprovadora que não é normalmente associada aos arquitectos norte-americanos. E também não revela grande interesse na linguagem opaca tão presente no que passa por ser o discurso da arquitectura contemporânea. Dir-se-ia que Gehry está no seu elemento quando pode dar largas à imaginação num gabinete com um lápis preto mole e algum papel de esboço amarelo. Mas sob essa simpatia e afabilidade encontra-se uma personalidade mais complexa, oferecendo material que Gehry tem usado em algumas das suas obras mais interessantes.
     Gehry nasceu em Toronto, em 1929, com o nome de Frank Owen Goldberg. Como muitos outros arquitectos, mudou de nome. Mas não foi por sugestão da sogra que Charles-Edouard Jeanneret se tornou Le Courbusier ou Ludwig Mies se tornou Mies van der Rohe. Gehry já afirmou que essa foi uma decisão que lamenta, mas que é tarde para inverter. Aceitou, contudo, o convite de Jean Chretien, primeiro-ministro do Canadá – feito, segundo Gehry, a meio de uma conversa telefónica de longa distância sobre hóquei no gelo –, para reassumir a cidadania canadiana.
     Tal como as de Louis Kahn ou I. M. Pei, a carreira inicial de Gehry como arquitecto dava poucas pistas para o futuro. A meio dos projectos para edifícios de apartamentos, lojas de jóias e centros comerciais para Victor Gruen, num estilo a que se pode apenas chamar um vernáculo comercial, Gehry começou a fazer experiências com mobiliário em cartão. A sua obsessão por imagens de peixes na década de 1980, que incluiu construir um restaurante no Japão com a forma de uma carpa gigantesca e criar um peixe a partir de uma nuvem de malha de aço no porto olímpico de Barcelona, parecia sugerir que algo de junguiano e fora do normal estava prestes a surgir. Mas só depois de ter atingido 50 anos é que construiu algo verdadeiramente poderoso. Desenvolveu uma prudência de artista, não oferecendo demasiadas explicações sobre o seu trabalho. Porquê construir um edifício com a forma de peixe? “Oh, não sei, foi uma coisa de que gostei muito.” Mas, noutras ocasiões, falava das suas memórias de infância e de brincar com a carpa viva que a mãe trazia para casa todas as semanas para o jantar de sexta-feira.
     A cidade de Los Angeles foi outra fonte importante. Com a aparente ausência de regras da sua paisagem urbana de formas que colidem e estranhas justaposições, a arquitectura de Gehry reflecte o contexto em que nasceu. Quando estamos rodeados por auto-estradas, anúncios publicitários gigantescos e restaurantes drive-in com forma de enormes chapéus de coco ou de cachorros quentes, não faz grande sentido tentar criar edifícios castos e de boas maneiras. E foi esta a direcção que Gehry começou a explorar. Era demasiada ousadia para muitos dos seus potenciais clientes em Los Angeles, que ainda se sentiam mais confortáveis com arquitectos bem estabelecidos e com uma abordagem menos arriscada. Só muito mais tarde é que os grandes corretores da cidade começaram a ver uma casa de Gehry como uma forma mais conspícua de medir o sucesso do que a habitual colecção de arte ou fundação de caridade. Em Los Angeles, ter uma casa de Gehry tem um tal destaque no infinitamente competitivo jogo do estatuto social, que um retrato de Warhol, mesmo com um certificado de autenticidade, nem se lhe compara. Uma casa de Gehry é muito mais barata que um jacto Lear mas está muito mais bem classificada, logo pela raridade, mas também devido ao tempo e ao esforço e respeito que implica. O magnata que já tem tudo e ainda precisa de se afirmar, pode consolar-se com a ideia de que existe alguém – referido na mesma frase que Frank Lloyd Wright, nada mais nada menos que pela autoridade do director do Guggenheim –, pronto a despender o seu tempo precioso a planear a minha casa de banho, e a manipular a relação espacial da minha piscina com a minha sala.
     Apesar das encomendas para projectos de casas terem começado a engrossar rapidamente, era nítido o ressentimento de Gehry por ter demorado tanto tempo a vencer um concurso público de relevo na sua cidade, e que tão poucos se lhe tenham seguido. Arata Isozaki projectou o MoCA, e Gehry lamenta ter entrado na competição que não estava destinado a ganhar. O Museu Getty foi para Richard Meier. E quando Gehry, por fim, conseguiu um projecto de relevo na sua cidade – o Disney Concert Hall – a construção parou praticamente logo após o lançamento das fundações, quando os curadores viram esgotados os recursos financeiros. Gehry foi vencido no concurso para a catedral Our Lady of the Angels, por Rafael Moneo. Foi de novo ignorado quando o Los Angeles County Museum of Art (LACMA) precisou de um arquitecto. Por essa altura afirmou não entrar em concursos. O problema era que, qualquer que fosse o arquitecto escolhido por Andrea Rich, directora do LACMA, o seu verdadeiro cliente iria ser Eli Broad, um multimilionário com quem Gehry já tivera uma série de experiências infelizes.
     O Guggenheim de Bilbau catapultou Gehry para uma órbita muito para além dos limites de Los Angeles. A sua arquitectura era uma sensação porque em nada se assemelhava a uma galeria de arte, nem sequer, diga-se, a uma peça de arquitectura tal como a arquitectura era previamente entendida. Com o telhado enrugado em folha de titânio, descrevendo curvas descendentes e ascendentes por entre as pontes e aterros na margem do rio de Bilbau, o Guggenheim parecia mais um desastre de comboio que um edifício, uma versão mutante feita em casa da Ópera de Sidney.
     Considerou-se que a sua maior proeza foi o papel que desempenhou na transformação de Bilbau de uma cidade recôndita industrial, cinzenta e decadente, assolada pelo terrorismo, com apenas um par de voos internacionais por dia, no tipo de cidade onde americanos ricos podem passar um fim-de-semana, e que pode surgir na sequência inicial de um filme de James Bond – o que não é, tem de ser dito, universalmente tido como uma forma essencial de medir o grau de civilização urbana. Bilbau pôs a nu muitos dos álibis usados para a construção de museus, revelando o egotismo e a ostentação sob a retórica do auto-aperfeiçoamento e da erudição. A forma já não seguia a função, mas sim a imagem.
     Bilbau está longe de ser o primeiro lugar a usar uma colecção de objectos para mudar a sorte da sua economia. É uma prática que remonta ao negócio de velhas relíquias de todas as fés, dos xiitas aos católicos, e que viu cidades roubarem ossos sagrados umas às outras, e a construção de complexos santuários para os acomodar de forma a encorajar uma lucrativa romagem de peregrinos. Quando o ministro das Finanças alemão, Conde Lutz Schwerin von Krosigk, tentou conter os gastos da reconstrução de Berlim, na década de 1930, Hitler disse a Albert Speer para o ignorar: “É pena que o ministro das Finanças não perceba a enorme fonte de rendimento que os meus edifícios de estado serão daqui a 50 anos. Recorde o que aconteceu a Ludwig II. Todos disseram que estava louco por causa do custo dos seus palácios. Mas agora a maioria dos turistas vai ao Norte da Baviera apenas para os ver. O dinheiro das entradas há muito que pagou a construção dos edifícios. O mundo inteiro virá a Berlim para ver os nossos edifícios. Basta apenas que digamos aos norte-americanos quanto custou o Volkshalle. Talvez exageremos um pouco e digamos 1500 milhões em vez de apenas 1000 milhões. Eles ficarão loucos para ver o edifício mais caro do mundo.” Como é evidente, o fuhrer pode reivindicar a invenção do efeito Bilbau.
     O que tornou a exposição Gehry no Guggenheim tão reveladora foi a facilidade com que era possível penetrar para além da superfície e encontrar, condensados no seu interior, vestígios de quase todas as preocupações de uma década particularmente berrante, exactamente na altura em que a paisagem que as fizera surgir estava à beira de ser transformada para sempre. A exposição pareceu ser sobre arquitectura, mas a verdade é que foi sobre o excesso, egoísmo e ganância da década de 1990. Ali estava uma selecção de ícones urbanos perseguidos com abandono quixotesco por cidades ambiciosas do mundo inteiro. Ali estavam as casas-troféu dos barões ladrões egoístas da nova economia. E ali estava exposta a estranha relação entre a arquitectura e a arte na sua face mais crua e dolorosa. Não é de admirar que Richard Serra sentisse desconforto pela forma como Gehry, seu ex-amigo e colaborador, estava a ser discutido tanto enquanto artista como arquitecto. “Encontramo-nos numa época em que quem manda é o arquitecto”, disse na altura, na televisão. “Eu desenho melhor na minha escultura que Gehry na sua arquitectura. O Frank está a querer chamar a atenção neste momento, tal como todos esses críticos porta-estandartes que suportam a sua imagem de artista. Lavagem para porcos.”
     A arquitectura tem uma posição curiosa na paisagem cultural. É a expressão mais visível dos valores culturais e cívicos. Historicamente, encontra-se no centro da arte de governar. E, contudo, durante grande parte da segunda metade do século passado, a sua discussão foi marginalizada num contexto de dominação cultural essencialmente literária e musical da alta cultura – também porque a elite da arquitectura se retirou para um gueto cada vez mais pequeno, erguendo barreiras de incompreensibilidade contra o mundo.
     Não só as pessoas estavam a ficar mais interessadas nas galerias de arte do que na própria arte; Gehry era um arquitecto que podia construir uma galeria e enchê-la de público, sem a necessidade de a encher de arte. O que iria isso fazer ao preço de um projecto de Gehry?
     O que não estava imediatamente visível no Guggenheim era a fragilidade da bo-lha sobre a qual todo este exibicionismo arquitectónico assentava. Numa destilação do zeitgeist quase demasiado perfeita para ser verdade, o principal patrocinador da exposição Gehry foi a Enron, que se entre-gou com indulgência a um último gesto de largueza cultural pouco antes de passar à história como uma das maiores fraudes empresariais de todos os tempos. O presidente e CEO da Enron, Jeff Skilling, escreveu com toda a pompa, meses antes da implosão da companhia, uma introdução ao catálogo tão embaraçosa que seria de esperar que o Guggenheim tivesse reduzido a pasta de papel todas as cópias sobreviventes. “A Enron partilha a busca presente do Arqtº Gehry pelo momento de verdade, o momento em que a aproximação funcional a um problema é inspirado pela arte que produz uma solução verdadeiramente inovadora. É esta a busca em que a Enron embarca todos os dias, questionando o convencional para mudar os paradigmas comerciais e criar novos mercados que darão forma à Nova Economia. É por partilharmos este sentido do desafio que admiramos Frank Gehry. Esperamos que vos traga tanta inspiração como nos trouxe a nós.” Skilling, bem como vários dos seus executivos, acabou por ter de fazer face ao seu momento prolongado de verdade quando se entregou às autoridades em Houston, tendo destruído o emprego a milhares de funcionários e roubado as poupanças de milhares de accionistas.
     A dominar a exposição esteve o projecto audacioso de Gehry para mais um museu Guggenheim; desta vez tratava-se de uma gigantesca estrutura de 53 000 metros quadrados concebida para assentar em pilares sobre o East River, na extremidade de Wall Street. O mayor Giuliani acabara de oferecer o terreno a Krens, e prometera também algum dinheiro, deixando no ar a ideia de que o projecto estava prestes a revestir-se da solidez que marca o ponto de viragem entre uma fantasia especulativa e uma possibilidade séria. A um nível mais banal e óbvio, toda a exposição poderia ser vista como uma campanha de recolha de fundos para o novo edifício. Krens estava a empolar o seu arquitecto, apresentando o seu projecto mais gla-mouroso como uma peça de museu por direito próprio, mesmo antes de ter sido construído. Mas o Guggenheim da downtown nova-iorquina não foi o único na procissão de modelos, sob a cascata de fitas metálicas perfuradas que Gehry fizera balançar sobre as cabeças dos visitantes, com coisas reveladoras a dizer sobre a natureza da cultura arquitectónica contemporânea e a sua relação incestuosa com o poder. Estas não eram as maquetas brancas, de perfeição glacial, de um arquitecto que tenta impor o seu sentido de ordem num mundo relutante. Possuíam a imperfeição propositada do mobiliário em cartão que Gehry produzira na década de 1960, quando teve início o seu envolvimento com Claes Oldenburg e Richard Serra, e isso afastava-as imperceptivelmente do estatuto de ferramentas de trabalho ou de auxiliares de vendas, na direcção da qualidade expressiva de objectos possuidores de ambição artística.
     A maqueta daquilo a que o catálogo chama a Residência Lewis – “casa” seria uma palavra demasiado modesta – incluía uma colagem de um peixe de plástico azul brilhante, uma cúpula mourisca pontiaguda, pregas de tecido vermelho e tiras de folha metálica. Este projecto em particular, começou por um convite para remodelar uma casa em Lyndhurst, no Ohio, e acabou por ser abandonado, dez anos mais tarde, depois de o projecto ter crescido até se transformar num palácio de fantasia inteiramente novo que se estendia por não menos que 3900 metros quadrados. A casa por construir ocupa 12 páginas do catálogo, sendo ultrapassada apenas pelo Guggenheim de Bilbau, com 14 páginas. Diplomaticamente, Gehry afirma que o projecto Lewis lhe permitiu explorar os temas que deram forma ao seu trabalho desde então.
     As pessoas que encomendam casas a Frank Gehry são um grupo sem igual. Entre as características que partilham, a auto-insegurança prima pela ausência. O cliente da casa Lewis, Peter Benjamin Lewis, tornou-se presidente do conselho de curadores do Guggenheim em 1998 e é um homem que contribuiu pessoalmente com 77 milhões de dólares para o museu, antes de se ter demitido amargamente em 2005. Quando Lewis se tornou presidente do conselho de curadores, Thomas Krens anunciou: “Agora que o Guggenheim cresceu e se transformou numa das grandes instituições culturais do mundo, o Peter vai certamente trazer o tipo de visão inspirada de que o Guggenheim precisará para florescer no século XXI.” Não há dúvida de que Lewis é uma figura extravagante. Tem um barco de 78 metros chamado Lone Ranger, suficientemente grande para ter uma piscina a bordo e 18 tripulantes. Não faz nenhum segredo do seu gosto por marijuana, uma predilecção que lhe proporcionou uma noite atrás das grades numa prisão neo-zelandesa, quando os cães-polícia do aeroporto de Auckland se entusiasmaram com o conteúdo da sua pasta. Chegou mesmo a sugerir aos seus subordinados na Progressive Insurance que continuaria a trabalhar até àquilo a que chamou “o acontecimento Rockefeller”, expressão usada para descrever o ataque de coração in flagrante que vitimou Nelson Rockefeller. Depois de lhe ter sido amputada a perna esquerda abaixo do joelho em resultado de uma doença vascular, ganhou o hábito de retirar a sua prótese durante as entrevistas e de a apertar junto ao colo. Mas talvez todas estas excentricidades possam ser vistas como a continuidade do exemplo estabelecido pelos fundadores do museu: Solomon Guggenheim, e a sua baronesa alemã Hilla Rebay, possuíam a fé inabalável de que a cirurgia dentária radical era a porta para a saúde espiritual.
     Lewis fez a sua fortuna – no valor de 1400 milhões de dólares, de acordo com a revista Forbes – transformando o negócio de seguros automóveis que o pai iniciara – uma empresa que em 1965 tinha 100 trabalhadores e uma receita de seis milhões de dólares –, num gigante de 14 mil trabalhadores e uma receita de 4800 milhões de dólares em 2003. De acordo com o catálogo, “o plano para renovar a casa original foi rapidamente abandonado em face das crescentes necessidades que assolavam a estrutura”. Trata-se de uma utilização interessante da palavra “necessidades”, sugerindo que uma equipa de engenheiros obstinados se debatera com uma série de imperativos sóbrios e funcionais que guiava o projecto como se se tratasse das inexoráveis leis da física.
     Gehry é muito menos reservado quando fala da história de obsessão arquitectónica que a casa Lewis representa: “O Peter não parava de acrescentar coisas ao programa.” Lewis pediu uma garagem para dez carros, e Gehry desenhou-a. Depois disse que precisava de espaço para armazenar a sua colecção de arte, e o projecto voltou a ser alterado. De seguida, precisava de um museu privado. Isso expandiu-se, mais tarde, quando Lewis disse necessitar de espaço para um director do museu e de espaço para um curador e para uma biblioteca. E, claro está, para o último grito em sistemas de segurança, incluindo salas de pânico e um túnel para fugas, e um sítio para uma colecção de tapetes persas, e o programa não parava de ser alterado.
     Gehry estava a ter de lidar com uma forma muito especial de indecisão, associada ao excesso de riqueza, daquelas que fazem com que um homem adulto seja incapaz de decidir se precisa de uma ou de duas casas para as visitas. Ou se prefere manter a garagem longe da vista da porta de entrada e ter de se molhar caminhando até casa depois de estacionar o carro – e todas as outras vaidades e neuroses e
inseguranças que nem mesmo um grande arquitecto consegue que deixem de pare-cer absurdas.
     Aos olhos de Lewis, pelo menos em parte, o objectivo da construção da casa era conseguir vingar-se daquilo que via como a sociedade respeitável de Cleveland. Lewis queria colocar no jardim um saco de golfe com 23 metros de altura, de Claes Oldenburg, que seria claramente visível a partir do campo de golfe vizinho de Mayfield Coutry Club, uma instituição pela qual ele se sentira humilhado quando era um rapaz de 12 anos, há meio século de distância. “Um colega de escola levou-me até lá para nadar e no dia seguinte disse-me que fora repreendido por ter sido amável com um judeu.” Foi talvez uma sorte que Lewis nunca tivesse conhecido Philip Johnson, também ele criado em Cleveland, a quem encomendou uma casa de visitas, quando ainda era estudante.
     As apresentações transformavam-se em actuações de circo. “De cada vez que o ia ver, ele tinha uma equipa de filmagens a acompanhá-lo. Num dos seus aniversários, levou a maqueta no avião e convidou o governador do Ohio e muitas outras pessoas para uma grande festa”, disse Gehry. “Tive de fazer uma apresentação da casa nessa festa.” Gehry respondeu fazendo uma maqueta do tamanho de um parque de bebés.
     O projecto estava constantemente a ser cancelado, quando Lewis se assustava com os custos. Depois voltava a ir ter com Gehry para o tentar convencer que queria mesmo que a casa fosse construída, e que a coisa mais importante na sua vida era conseguir que o seu arquitecto voltasse ao trabalho. O orçamento não parava de aumentar, de cinco milhões para 20 milhões de dólares, depois para 65 milhões e, mesmo, 80 milhões. Depois o filho de Lewis também se envolveu: “Passou três semanas a trabalhar no nosso gabinete, e decidiu que o estávamos a roubar.”
     Lewis é divorciado, e os seus filhos são todos adultos. É difícil imaginar como todos aqueles compartimentos poderiam ser utilizados simultaneamente, e o enorme esforço e coreografia que seriam necessários para lhes dar uma vida que não apenas a de peças de museu. Parecia evidente que, depois de se reflectir na linha de cintura, a epidemia de obesidade da América chegara à sua arquitectura. A equipa de filmagens, contudo, conseguiu terminar o filme sobre a não construção da casa de Lewis. Jeremy Irons contribuiu, dando voz ao comentário reverencial.
     Encetando outra volta em torno da espiral do Guggenheim, passando pela obra com que Paul Allen, antigo sócio de Bill Gates na Microsoft, satisfez a sua paixão por Jimi Hendrix, ao pedir a Gehry que concebesse o Experience Music Project em Seattle, por 240 milhões de dólares, encontramos uma maqueta da Peter B. Lewis School of Management, na Universidade de Case Western Reserve, em Cleveland. Este é o único projecto de Gehry para Lewis que chegou a ser construído.
     Não é tão exuberante nem tão caro como a casa teria sido, mas ainda assim é suficientemente explosivo no seu desdém pela geometria ortogonal. Tem o nome de Lewis, pois este contribuiu com 36,9 milhões de dólares para a sua construção. Não foi, ao que parece, uma experiência totalmente feliz para ele. A contribuição original de Lewis ia ser de 15 milhões de dólares, mas foi persuadido a contribuir com mais do dobro da sua doação, depois do custo da construção ter escalado de 25 para 61,7 milhões de dólares, uma derrapagem pela qual ele aparentemente não culpou Gehry, mas que provocou uma violenta ruptura entre Lewis e a universidade. Lewis afirmou ao Cleveland Plain Dealer, logo após o fecho da exposição Gehry, que a Case Western era “uma universidade doente, que está em colapso e que arrasta Clevelend consigo para um buraco”. Exigiu que os curadores da universidade reestruturassem o seu conselho e reduzissem para metade o seu número. Até lá, ele boicotaria todas as iniciativas de beneficência em Cleveland.
     Mas a verdade é que Lewis também não gosta lá muito de Cleveland. Como parece sugerir a sua opinião sobre o clube de golfe, Lewis há muito que tem uma relação difícil com a cidade. Na década de 1980 quis que Gehry construísse uma torre de 50 andares para a sua empresa. Lewis mostrou uma maqueta do projecto, curiosamente ausente da exposição do Guggenheim, no seu apartamento na cidade. Donald Judd, Richard Serra e Claes Oldenburg estiveram envolvidos no projecto – numa das versões, parecia que o arranha-céus estava a ler uma versão gigante do jornal local. Nunca foi construído, pelo menos em parte, de acordo com Lewis, por ele se ter sentido tão insultado pelo que entendeu ser um comentário pessoal desdenhoso, feito por um dos convidados na apresentação do projecto. “Senti-me marginalizado, desprezado, excluído, motivo de risota”, disse, e desistiu do edifício. Anos mais tarde, Lewis contou a um jornalista que ficara de tal forma zangado que quis atirar o homem, cuja ofensa ao que parece fora não o ter reconhecido, pelas escadas abaixo.
     Enquanto presidente do conselho de curadores do Guggenheim, a primeira tarefa de Lewis devia ter sido encontrar uma forma de lidar com o facto de o modelo económico de permanente crescimento do Guggenheim pura e simplesmente não funcionar. Krens apostara numa rede mundial de museus que lhe permitisse rentabilizar custos, alargando as exposições a todas as suas (cada vez mais impacientes) colónias de Berlim e Bilbau, e onde mais decidisse colocar a bandeira do Guggenheim. Mas, fazer deslocar as mega-exposições necessárias para atrair multidões e equilibrar o orçamento não é fácil. Um museu não funciona como uma editora quando decide promover co-edições internacionais para aumentar as tiragens e fazer descer os custos de produção. Os financiadores não gostam de longas digressões, e a poupança obtida com a partilha dos custos acabou por se revelar muito inferior ao que Krens previra. Apesar de toda a sua frenética actividade, o Guggenheim não conseguia gerar receita suficiente para estabilizar as suas finanças. Viu-se forçado a procurar constantemente novas formas de financiamento. A determinada altura, Krens esteve perto de mudar o nome da instituição para Lefrak Guggenheim, em troca de alguns milhões de dólares de uma família ligada à construção. A indignação geral embaraçou os Lefrak ao ponto de alterarem as condições da sua oferta. Mas os 15 milhões de dólares extraídos a Georgio Armani pela utilização da rotunda do Guggenheim para uma exposição da sua roupa, e o dinheiro do patrocínio da BMW pelo uso do mesmo espaço para uma exposição de motas, foram vistos por toda a gente como um abdicar da dignidade do museu. Esta safra conseguiu pouco mais que um adiamento temporário do cenário de desastre financeiro. A abertura do Guggenheim de Bilbau rendeu ao museu a soma de 20 milhões de dólares do governo basco, que para além disso, se encarregava do pagamento de salários, despesas de gestão e do orçamento para as aquisições. Mas o Guggenheim foi forçado a recorrer à sua dotação para fazer face às despesas correntes do museu de Nova Iorque em 2001 e 2002. Nos dois anos anteriores, vendera parte da sua colecção, por 14 milhões de dólares, para pagar as contas e estava a contar com Ron Perelman, presidente do Guggenheim, para mais uma injecção de capital no valor de 20 milhões de dólares. Las Vegas não trouxe as receitas nem os visitantes que Krens esperara. O desaire da Guggenheim.com custou aos investidores do museu 20 milhões de dólares. Os curadores não tinham dinheiro para montar os programas de exposições planeados, mas a única coisa em que Krens se concentrava era na forma de obter dinheiro para pagar o próximo grande projecto de arquitectura, para enviar para o extremo oriente e aliciar um novo parceiro para construir mais um novo Guggenheim, qual Ludovico da Baviera, a delapidar como um louco o seu Tesouro para construir castelo atrás de castelo. Ele estava, ao que parece, pronto para sancionar a venda de lugares no conselho de administração a quem oferecesse mais. Lewis substitui Perelman como presidente do conselho de curadores, segundo o próprio, por se ter comprometido a aumentar para mais do dobro a sua contribuição para o museu. “Eu comprei o cargo”, afirmou Lewis. Depois de se agarrar obstinadamente aos destroços dos seus planos de expansão implacáveis, e de continuar a promover esquemas cada vez mais fantásticos para novas filiais do Guggenheim, Krens ficou finalmente sem margem de manobra. É demais, declarou Lewis: “Houve uma grande confusão na forma como foram geridas as finanças. Foram usadas, inicialmente, as reservas de ontem, e depois o optimismo de amanhã. Pus fim à adulação e passei à ameaça.” Lewis viu a proposta de orçamento para 2003 e fez um ultimato a Krens: “Ou regressa aqui com uma proposta a sério, ou teremos de discutir a sua saída”, foi como explicou a sua posição. As ameaças de Lewis persuadiram Krens a reduzir em 13 por cento o orçamento do Guggenheim em relação ao ano anterior. Lewis dourou a pílula, doando ao Guggenheim 12 milhões de dólares adicionais para pôr cobro às dívidas por saldar, mas tentou deixar claro que o seu preço era o fim da arquitectura extravagante: “Se Frank Gehry projectar um edifício público de serviços”, como Lewis chamava agora à proposta do novo museu, “para ser construído na downtown de Nova Iorque, estou pronto para cobrir os últimos 25 por cento. Mas com condições. Nenhuma energia deverá ser desviada do museu para o novo edifício.”
     Krens parece não ter percebido a mensagem, talvez porque, como afirma, “é mais fácil conseguir financiamento para um edifício do que para uma exposição. Um edifício é permanente. As pessoas que dão dinheiro têm uma sensação de confiança no valor de um edifício”. Os seus pensamentos encontraram eco em Frank Stella, que acredita que a arquitectura atrai os doadores pois, “eles sabem que não estão a ser enganados. Eles não querem gastar 60 milhões de dólares num Van Gogh porque, secretamente, acham que uma propriedade justifica esse preço e um quadro não”.
     Mesmo após o Guggenheim da downtown ter sido finalmente abandonado, Krens continuava irremediavelmente viciado em aeroportos, arquitectos, maquetas e contratos com presidentes de câmara ambiciosos. Assinou um, no Rio de Janeiro, para a construção de um museu Guggenheim brasileiro, desenhado por Jean Nouvel, que seria quase totalmente debaixo de água – Gehry não chegou a acordo financeiro com Krens para trabalhar no projecto. Foi orçamentado em 250 milhões de dólares, e, precipitadamente, Krens deu publicamente a entender que renderia ao Guggenheim 40 milhões de dólares em receitas. Mas, no Rio de Janeiro, o projecto viu-se rapidamente alvo de acusações questionando a moralidade de gastar tanto dinheiro do erário público numa cidade cercada por favelas, cidade que, ao contrário de Bilbau, já possuía um Museu da Arte Moderna de valor arquitectónico e uma florescente indústria turística. Os tribunais do Rio consideraram o negócio ilegal, e os curadores do Guggenheim votaram pelo abandono do projecto. Um acordo semelhante com Taiwan, envolvendo um edifício desenhado por Zaha Hadid, esteve em estudo. Teria sido construído em Taichung, supostamente para atrair mais turistas, mas o aeroporto da cidade não tinha voos internacionais, e o município recusou apoiar o esquema. Apesar do implacável optimismo de Krens, o Guggenheim estava debaixo de um enorme esforço financeiro, havendo duas possibilidades: ou o aperto financeiro era tão grande que Krens não tinha outra hipótese que não fosse percorrer mundo em busca de mais negócios rápidos que mantivessem afastados os credores, ou, simplesmente, ele não conseguia deixar de brincar à arquitectura para se distrair do desastre iminente. O próprio Lewis estava de tal forma obcecado pela vontade de construir que nunca poderia conseguir refrear um director que partilhava das suas obsessões. Seja como for, os críticos do Guggenheim começavam a colocar questões difíceis sobre o que aconteceria se o museu faltasse aos seus compromissos obrigacionistas. Em última análise, estaria a colecção em risco? A pergunta tornou-se mais premente quando Lewis falhou a sua tentativa de disciplinar Krens, e se demitiu do lugar de presidente, em 2005.
     Ao contrário de Lewis, Eli Broad já conseguiu mesmo construir uma casa de Frank Gehry. Fica num lote de 1,2 hectares, numa encosta em Bel Air. Tal como Lewis, Broad tem uma queda pela arte conspícua. Em lugar do saco de golfe de 23 metros que Lewis pretendia, Broad tinha uma peça de 55 toneladas da autoria de Richard Serra, chamada No Problem, fabricada na costa leste e transportada para a Califórnia em camiões de plataforma para ser colocada no seu jardim. Mas a casa de Broad não se encontrava na exposição pois Gehry considerava intolerável o estilo de microgestão do seu cliente. Se algum dia existir uma Fundação Gehry estabelecida para administrar o legado da sua obra, ao estilo da Fundação Warhol, a casa Broad será o caso mais problemático que terá de enfrentar.
     Broad, o homem mais rico de Los Angeles, fez a sua fortuna cobrindo três estados com lotes de habitações concebidas, até ao mais insignificante prego e parafuso, para que a sua construção fosse o mais barato possível. Ele sabia exactamente o que queria na sua própria casa, excepto, claro está, que não podia ser ele a projectá-la. Mas não esperou que Gehry completasse os desenhos de trabalho. Gehry renegou o projecto quando o cliente decidiu seguir em frente e construir a casa sem ele. Isso não impediu Broad de mostrar a sua satisfação na sua nova casa, perante os fotógrafos. “A maioria das grandes empresas americanas são governadas por gestores que presidem ao status quo”, proclamou. “Esses gestores estão aptos a vi-ver em casas tradicionais e a interessar-se por arte de épocas passadas. Mas quem for um empresário agressivo sente-se atraído por pensamentos novos. E provavelmente pela arte e arquitectura contemporâneas. São inovadoras e energéticas.”
     Broad é muito mais rico do que Lewis. A Forbes estima a sua fortuna em 3,4 mil milhões de dólares, resultado de dois sucessos empresariais distintos: o primeiro aconteceu na área da construção civil, com a KB Home Corporation, o segundo com a SunAmerica Inc., uma sociedade de pensões. Outros atribuem à sua fortuna o valor de cinco mil milhões de dólares. Broad define-se agora como um filantropo que corre riscos – isto é, usa o seu dinheiro e a sua amizade com Richard Riordan, antigo mayor de Los Angeles, para fazer impor a sua vontade na cidade. Apoiou a campanha bem sucedida para persuadir os votantes do Los Angeles Unified School District a aprovarem a assinatura de um empréstimo obrigacionista para construir as primeiras escolas novas da cidade em três décadas. Envolveu-se na construção do Museum of Contemporary Art, tendo sobrevivido à demissão de um dos principais angariadores de fundos da comissão, e ao processo que moveu ao museu pela devolução da sua doação de um milhão de dólares, quando os curadores se recusaram a despedir Arata Isozaki, arquitecto que ele próprio escolhera. Broad desempenhou um papel instrumental para atrair Pontus Hulten ao cargo de director do museu, e acabou por estar também implicado na sua saída. Agora quer fazer da Grand Avenue os Champs-Élysées de Los Angeles.
     Se Lewis é alguém a quem a riqueza deixa paralisado naquele tipo de indecisão demonstrada pela saga da casa que nunca foi feita, Broad sabe exactamente o que quer. E o que Broad quer é pôr o seu nome em edifícios. Existe já um Eli Broad College of Business and Graduate School of Management, na Universidade de Michigan. Existe um Broad Art Center, na UCLA. A Cal Arts tem o Edythe e Eli Broad Center and Broad Hall, e há também um Broad Center de Ciências Biológicas. A Broad Art Foundation, até ao momento, ainda não dispõe de uma galeria permanente para albergar os seus mais de 700 trabalhos de 100 artistas contemporâneos, com Koons, Basquiat, Warhol, Sherman, Holzer e Salle particularmente bem representados. E Broad tem usado essa colecção para concentrar a atenção dos museus do mundo inteiro, um processo que claramente o tem divertido muito. De acordo com o website da Fundação Broad, “a Art News considerou que os Broad estão entre os dez principais coleccionadores de arte do mundo”. Mas é o dinheiro de Broad, mais do que o seu gosto por arte, que comanda a colecção. O LA Times descreve desdenhosamente a sua política de acumular trabalhos de artistas que já possuem reputações consideráveis, dizendo que se trata “simplesmente de comprar e não de coleccionar”. Broad já esteve envolvido nos conselhos de administração dos museus MoMA, Whitney, Hammer e High, e mais recentemente no LACMA. De todas as vezes, Broad namorou a ideia de construir, procurando a oportunidade de fazer um marco à sua imagem, chegando à conclusão de que não ia conseguir levar a sua avante, e seguindo em frente.
     Mesmo sem a casa, Broad foi uma presença nos bastidores da exposição Gehry do Guggenheim, dado o seu impacto numa das maiores peças em exibição, o Walt Disney Hall. Embora Broad tenha estado envolvido na recolha de fundos para o Hall, provocou outro conflito quando pretendeu substituir Gehry no comando do processo de construção e o arquitecto ameaçou desistir se perdesse o controlo do projecto. Não custa ver o empréstimo de parte da colecção de Broad directamente ao Guggenheim de Bilbau para uma exposição temporária, sem ter passado por Nova Iorque, como uma atitude deliberada para irritar Krens. As exposições em Bilbau que partem de Nova Iorque permitem a Krens cobrar uma importância; mas se assim não for, não lhe dão nada a ganhar. Broad voou para Bilbau acompanhado pelo ex-mayor Riordan e por outro amigo rico, que também possui uma casa em Los Angeles desenhada por Gehry, Rockwell Schnabel, ex-embaixador americano na União Europeia.
     Era seguramente a atenção de Eli Broad, mais que a de todos os outros presentes na sala, que Rem Koolhaas estava a tentar atrair, no dia em que, em finais de 2001, apresentou a sua proposta ao conselho do Los Angeles County Museum of Art, que queria resolver os problemas trazidos por ter uma série de galerias dispersas e pouco satisfatórias. Koolhaas sabe como tornar uma apresentação memorável. Desta feita, foi marcada por uma série de palavras, que iam sendo projectadas uma de cada vez. DESOBEDIÊNCIA, sugerindo que não estava a seguir os detalhes da pormenorizada encomenda. LACMAX, para condensar a sua ideia de demolir todos os edifícios existentes do LACMA e de os substituir por uma única estrutura nova.
     Isso, afirmou imperturbavelmente Koolhaas, seria a so-lução mais económica para os problemas do museu. Tratava-se, claro está, do tipo de gesto arrojado calculado para agradar a alguém como Broad, que se aproximava dos 70 anos, e estava determinado a construir um edifício emblemático antes que fosse demasiado tarde para poder apreciar o prazer de passear em seu redor. Mas após um ano de negociações, o LACMA dispensou os serviços de Koolhaas. Nem a ginástica de Broad foi suficiente para desbloquear os donativos necessários para a construção, e, apesar da sua fortuna, não quis ser ele a entrar com todo o dinheiro. Broad doou 1,2 milhões de dólares para estimular o negócio e emprestou um milhão de dólares ao LACMA para submeter ao voto dos munícipes uma proposta que angariaria 98 milhões de dólares para o projecto de Koolhaas sob o pretexto da realização de melhorias na segurança contra terramotos e incêndios. Três doadores, um par de fundações e dinheiro do estado somariam 250 milhões de dólares, o suficiente, calculava ele, para dar andamento ao projecto. Mas o empréstimo obrigacionista não foi aprovado, não havia dinheiro dos contribuintes, e Broad abordou Renzo Piano, propondo-lhe acrescentar um Broad Pavillion ao campus do LACMA. O que matou verdadeiramente o projecto de Koolhaas foi ter transgredido uma das regras fundamentais da construção de museus. Todos os pavilhões do LACMA que Koolhaas queria demolir, alguns com pouco mais de 20 anos, ostentavam sobre a porta o nome dos seus patronos. Koolhaas estava a lembrar brutalmente a todos os potenciais doadores o quanto tudo é efémero, mesmo o dinheiro e os museus.
     Broad celebrou o seu septuagésimo aniversário anunciando a doação de 60 milhões de dólares ao LACMA. Haveria 50 milhões para construir um novo edifício independente projectado por Renzo Piano, e outros dez milhões para a aquisição de novas obras de arte. Broad é claramente mais hábil do que Peter Lewis a fazer prevalecer a sua opinião perante directores de museu renitentes. O Guggenheim gasta dinheiro naquilo que Thomas Krens bem entende. Broad tinha a directora do LACMA, Andrea Rich, numa posição delicada, especialmente depois de ela ter investido tanto do seu prestígio pessoal no projecto abortado de Koolhaas. Broad é demasiado reservado quanto a uma promessa da sua colecção ao LACMA ou mesmo em relação a um compromisso financeiro a longo prazo. Embora o novo edifício se vá chamar Broad Contemporary Art Museum no LACMA – presumivelmente pelo facto de um museu ter mais hipóteses de sobrevivência do que uma mera galeria –, as despesas correntes serão da res-ponsabilidade do LACMA. Renzo Piano tornou-se o arquitecto preferido dos ricos em busca da imortalidade. Antes de Broad, trabalhou para Dominique de Menil, em Houston, e para Ray Nasher, no seu museu privado em Dallas. E antes disso houve Gianni Agnelli.
     Broad demonstrou, com uma clareza brutal, a natureza essencial do equilíbrio de poder entre os homens ricos e os museus, numa lógica que parece repetir-se de duas em duas décadas. Broad está a seguir o exemplo da família Lehman, que, como parte do preço pela doação da sua colecção ao Metropolitan Museum de Nova Iorque, exigiu que a sua sala de estar fosse reconstruída no interior do museu, como que em obediência aos ritos funerários do antigo Egipto. Estipularam igualmente que nenhuma peça da colecção poderia ser emprestada e que apenas obras da colecção Lehman podiam ser exibidas na galeria sem a aprovação dos curadores por eles escolhidos.
     As raízes do museu moderno, apesar de todo o seu louvor aos valores liberais, encontram-se em dois dos mais fundamentais impulsos humanos: desafiar a morte e glorificar o poder. O museu é uma síntese do santuário e do monumento. Mas, logo desde a sua origem, também a pilhagem desempenhou um papel fundamental na evolução do museu. Napoleão determinou-se a tornar clara a posição de Paris como capital da Europa, usurpado sistematicamente os tesouros artísticos aos países conquistados e pondo-os em exibição no Louvre. A sua tentativa de levar a Pedra de Roseta de Alexandria para França falhou quando esta caiu em mãos britânicas. Mas mandou retirar os cavalos de bronze da Praça de S. Marcos e fê-los desfilar por Paris nas celebrações da vitória da sua campanha italiana. Com o exílio de Napoleão, os cavalos acabaram por regressar a Veneza, que, claro está, nunca pôs sequer a hipótese de os devolver aos seus anteriores donos em Constantinopla – de onde, para começar, no meio de uma orgia de violação e pilhagem que passou por uma cruzada, no início do século XIII, La Sereníssima os subtraíra. Mas Bizâncio também não era o dono original dos cavalos. Alguns académicos sugerem que os cavalos tenham sido levados de Chios, outros que vieram de Roma. Será então que deviam voltar a ser devolvidos, a par de todas as outras esculturas clássicas que adornam Veneza, e dos leões no exterior do Arsenal?
     Os cavalos, pelos menos, regressaram a Itália; nem todo o grosso caudal de arte de que Napoleão se apossou regressou à sua casa por trás dos Alpes. É obvio que há qualquer coisa genuinamente chocante na simplicidade brutal da versão napoleónica de um connoisseur. Obter pela força os tesouros nacionais dos outros é um regresso desconfortável à barbárie, mesmo tendo levado à criação de um dos maiores museus da Europa. Serve para recordar os dias em que generais vitoriosos arrastavam os inimigos capturados amarrados às suas quadrigas ou quando Mussolini roubou uma colecção de obeliscos durante a sua campanha na Abissínia ou os planos de Hitler para um gigantesco museu de arte em Linz, para ostentar o espólio de toda a Europa, projectado para si por Herman Giesler, um arquitecto que via em Speer um Judas. Fomos levados a encarar o museu como um repositório de erudição desinteressada e de valores civilizados. Mas o museu sempre possuiu um papel eminentemente político. E o seu crescimento tem sido alimentado por uma mistura poderosa de vaidade e de política económica e nacional. A sorte dos Mármores do Parthenon é um bom exemplo.
     Não é preciso fazer grande esforço para perceber o que o governo grego estava a tentar dizer ao mundo sobre si próprio quando escolheu Bernard Tschumi como o arquitecto de um novo museu para acolher os Mármores em Atenas. Esqueçamos, por um momento, o que poderia ter sido o novo Museu da Acrópole, de Bernard Tschumi. Do ponto de vista do governo socialista grego da altura, ele era o arquitecto ideal para o conceber. Tschumi não só não era grego, e podia por isso ser tido como neutral na disputa pelos Mármores, como era um arquitecto moderadamente famoso. Por isso, a sua nomeação podia ser apresentada como um gesto confiante e aberto de maturidade cultural, ao invés de uma mais previsível selecção de um favorito local. Ele pode não ter estado propriamente à altura da promessa deslumbrante da sua primeira grande encomenda – o pioneiro parque urbano em La Villette, Paris – mas os Mármores exigiam ser tratados com extrema delicadeza e não serem sujeitos a um agressivo manifesto de arquitectura.
     Foi por essa razão que Tschumi, tanto política como esteticamente aceitável, venceu o segundo concurso para projectar o museu, dez anos após o colapso do primeiro concurso. Tschumi trouxe credibilidade a todo o processo. Não é de espantar, por isso, que o ministro da Cultura da Grécia o tenha convidado para o acompanhar na sua ofensiva de charme a Londres, numa tentativa de causar embaraço e fazer sair os Mármores da Grã-Bretanha na antevéspera dos Jogos Olímpicos de Atenas. Contratar um arquitecto suíço-americano em voga para construir um museu com paredes de vidro não é apenas uma forma de a Grécia nos lembrar do seu direito aos Mármores; trata-se também de tentar projectar a imagem de um estado moderno e sofisticado. Um jornal de Atenas chegou ao ponto de comparar o projecto luminoso de Tschumi, que alegadamente tipificava a nova Grécia, com aquilo a que chamou “o austero e deprimente Museu Britânico”. Mas o mais interessante é a mensagem inconsciente. Criar um museu meio vazio para acolher esculturas que é pouco provável obter, sugere mais um gesto de impotência que de confiança.
     Os planos de Tschumi mostravam de que forma era possível reunir os Mármores com o monumento do qual se tinham separado há quase dois séculos. Isso não significava que eles fossem mesmo regressar ao friso de Ictinus, onde nada os protegeria da atmosfera corrosiva da moderna Atenas. A estratégia de Tschumi foi criar um museu no sopé da Acrópole, voltado para as escavações de Makriyanni, e em parte estendendo-se sobre elas. Os visitantes entram por uma base sólida e vão subindo gradualmente através de uma série de galerias de pé-direito duplo, que vão exibindo a colecção do museu em ordem cronológica e contando a história do local desde o período arcaico, passando ao Império Romano. Pelo caminho, encontram as inevitáveis lojas e restaurantes. Por fim, num clímax teatral para a cuidadosa sequência de peças exibidas, os visitantes chegam, pestanejando, à luz do sol, subindo a uma caixa de vidro gigantesca onde podem contemplar os Mármores, com o templo em pano de fundo, fixos num conjunto de paredes interiores alinhadas com precisão com o Parthenon. Tschumi afirmou que as paredes de vidro podiam ser concebidas de forma a proteger do clima tanto as esculturas como os visitantes, mas custa a crer que o calor abrasador do Verão ateniense possa ser contido sem recorrer a uma quantidade assustadora de aparelhos de ar condicionado, protecções contra o sol e vidros fumados, que teriam o efeito de tapar as vistas e a luz, que eram o objectivo inicial do exercício.
     A Grã-Bretanha recusou a devolução dos Mármores, não por razões ligadas à arquitectura, mas porque o Museu Britânico declinou peremptoriamente contemplar a sua existência sem eles. Mas há questões importantes – mais do que apenas as suas paredes de vidro – que poderiam ser colocadas a propósito do projecto de Tschumi. Foi vítima de ser o produto de uma encomenda que, tal como a escolha de Tschumi, teve tanto de político como de cultural.
     Grande parte da lógica da pretensão grega pela devolução dos Mármores ao país assenta no estabelecimento de uma ligação visual entre estes e o templo. Mas para alcançar isso, Tschumi foi forçado a construir num local que os arqueólogos gregos temem tenha sido irreparavelmente danificado pela perturbação causada pelo processo de construção. Houve protestos contra as obras preliminares no local, que, segundo alguns, destruíram vestígios cristãos e clássicos. O governo socialista ignorou-os e continuou a afirmar que estava empenhado em inaugurar pelo menos uma parte do museu a tempo dos Jogos Olímpicos, para não dar parte de fraco e de incompetente. Na verdade, a construção tinha começado há pouco, aquando das eleições gregas, em Fevereiro de 2004, que ditaram a saída do poder dos socialistas. Um novo ministro da Cultura ameaçou por algum tempo cancelar o projecto de uma vez por todas, e perseguir judicialmente o seu antecessor por ignorar imposições legais contra o projecto e os danos arqueológicos que provocaria.
     De facto, a construção do museu podia ser encarada como a continuação da transformação do que resta do Parthenon num monumento a uma visão muito particular da identidade grega, que já dura há quase duzentos anos, um processo que nos apresenta hoje a Acrópole como um momento isolado e etnicamente puro – expurgado de todos os acrescentos posteriores, eles próprios de enorme interesse histórico. Uma mesquita, uma fortaleza veneziana e uma série de vestígios românicos e renascentistas, todos eles foram extirpados para criar uma visão icónica que Atenas agora projecta para reclamar os momentos mais gloriosos da Grécia Antiga. Existem igualmente alegações de que o Museu Parthenon de Tschumi destruiu camadas e camadas de preciosos metros de arqueologia, em nome de um gesto político. Em todo o caso, não havia nada para ver do museu durante o momento de glória olímpica grega.
     Todos os países usam os seus museus como parte de um reportório de instrumentos com que se definem. Na Grã-Bretanha, enquanto Tschumi tentava construir uma ideia da Grécia, tanto a Galeria Tate como o Victoria and Albert Museum tratavam de remodelar-se, a si e às imagens e objectos que têm servido para construir uma noção da identidade britânica, desde que abriram as suas portas no século XIX. Ambas as instituições partilham uma ambiguidade em relação a esses objectos. É uma ambiguidade que pode ser entendida como a desconstrução, ou a celebração de uma identidade. Ambas as galerias reveladas recentemente, na Tate Britain e na Victoria and Albert British Galleries, são maiores do que teria sido o Museu do Parthenon. Mas são invisíveis ao mundo exterior. A Grã-Bretanha prefere expressar-se na transformação de edifícios antigos, em detrimento da construção de edifícios novos ostentosos. A Tate Britain tornou-se a prateleira de fogão de sala da nação. Uma sequência de desenhos de Blake partilha uma parede com um retrato do poeta Chatterton no seu leito de morte, com a imagem de um Bonaparte desamparado e subjugado, de Turner, pendurada na parede oposta. Continua a ser uma galeria de arte, mas é também um repositório das memórias e recordações preferidas da nação. Nas Victoria and Albert British Galleries é possível ver o próprio fogão de sala, para além do que lá se encontra exposto. Passamos pelo quarto de estado da Melville House, num esplendoroso veludo carmesim de Génova, atravessamos o quarto de música de Chicksands Priory, e vemos coches dourados e uma estante de carvalho do tamanho de uma casa. Há magníficos fogões de sala em mármore sob tectos trabalhados, mobílias teimosas, obstinadas, de Thomas Hope, e uma papeleira que parece ter sido desenhada por William Burges sob a influência de láudano. Eis a delicadeza refinada do design pré-moderno, por Godwin e Christopher Dresser, e a cadeira que Charles Rennie Mackintosh fez para o seu apartamento em Glasgow. Esta é a história da reacção ambivalente da Grã-Bretanha à avalanche de coisas que a industrialização tornou possíveis. Podemos encontrar o esboço do Crystal Palace, que Joseph Paxton fez num papel mata-borrão. E ao seu lado está papel de parede de William Morris.
     A outra tradição que está na origem do museu é melhor representada pela prodigiosa Cidade da Cultura, de Peter Eisenman, que ganha forma nos arredores da cidade galega de Santiago de Compostela. Uma ópera, uma biblioteca, um museu e um complexo de edifícios académicos estão a ser construídos, num enorme gesto, em forma de encosta. O seu fim é claramente fornecer uma nova fonte de recursos económicos a uma cidade que em tempos prosperou, graças aos peregrinos atraídos pelas relíquias sagradas que os galegos haviam obtido. Também serve para imortalizar a memória de Manuel Fraga, o veterano político que começou a sua carreira na época de Franco, que foi quem, com setenta e muitos anos, encomendou a Cidade da Cultura e se agarra ao poder para a ver terminada. Santiago de Compostela está dependente de enormes subsídios de Madrid e Bruxelas, e da recusa grandiloquente em fazer face aos problemas práticos de gerir uma ópera numa cidade onde esta não tem tradição.
     Pouco depois do colapso do projecto LACMAX de Koolhaas, um organismo até então obscuro, conhecido como East of England Develo-pment Agency, lançou aquilo a que chamou, num ridículo quase cómico, um concurso internacional para encontrar “um projecto visionário para um edifício, ou uma série de edifícios, de referência”. A agência disse estar à procura de “um ícone que irá gizar um sentimento de identidade para a região como um todo”. Fazia parte da sua estratégia apresentar o Este de Inglaterra como “uma região de ideias”, e um barómetro para a medir o alastrar da mania pela arquitectura exibicionista. Não foi especificado nenhum local, nem tinha ainda havido nenhum compromisso financeiro, o que dificilmente inspirava confiança, mas, um membro do conselho de administração afirmou que aquele pedaço de fé inabalável era “uma oportunidade fantástica para nos juntarmos enquanto região e decidirmos de que forma nos queremos apresentar ao resto do mundo”. Pondo de lado a probabilidade gritante de que o resto do mundo continuaria a tratar a região Este de Inglaterra com a mesma indiferença que adoptara desde o declínio do comércio de lanifícios no século XV, não é difícil adivinhar o tipo de coisa que eles tinham em mente: a ópera com as escamas de peixe em titânio, concebida por Frank Gehry como uma massa mole de forma irregular ou uma ponte pedonal gratuitamente excêntrica de Santiago Calatrava. Concursos como este tornaram-se ubíquos, levando inevitavelmente ao tipo de arquitectura que parece concebida para servir de pano de fundo a anúncios comerciais de automóveis ou para um daqueles pisa-papéis com a Torre Eiffel numa tempestade de neve. A procura do ícone na arquitectura tornou-se o tema mais omnipresente no design contemporâneo. Se se pretende sobressair numa procissão infindável de subúrbios industriais decadentes, bairros de lata rurais e áreas em expansão com a mesma obsessão e determinação em construir o seu próprio ícone que faça o mundo ir bater à sua porta, então é necessário criar algo que seja verdadeiramente capaz de atrair as atenções. Um efeito Bilbau pode provocar ondas de choque que o levam às primeiras páginas, mas repetir o mesmo truque é embarcar numa arquitectura de rendimentos decrescentes, na qual cada novo edifício sensacional tem de tentar eclipsar o anterior. Isto leva a um tipo de hiper-inflação, o equivalente na arquitectura ao declínio da moeda na República de Weimar.
     Todos querem um ícone hoje em dia. Querem que um arquitecto lhes faça o que o Guggenheim de Gehry fez por Bilbau e a Ópera de Jorn Utzon fez por Sidney. Quando o Walt Disney Hall abriu finalmente em Los Angeles, a maioria dos discursos na cerimónia de inauguração falou mais sobre o que a nova sala de concertos ia fazer pela imagem da cidade do que sobre a sua acústica.
     Esta não é certamente uma forma infalível de alcançar uma arquitectura discreta e com tacto, ou mesmo qualidade. O efeito de toda esta construção de imagens é tão prejudicial para os arquitectos como para as cidades que os contratam. Nunca deve ter havido outro momento em que tanta arquitectura de grande visibilidade tenha sido projectada por tão poucas pessoas. Às vezes, parece que existem apenas 30 arquitectos no mundo; 20 deles formam o circo voador com jet-lag permanente, que se leva suficientemente a sério para notar a presença de outro membro do círculo mágico, quando se encontram no lounge da primeira classe do aeroporto de Heathrow, e os outros dez, a esgotar as últimas reservas, que foram postos de lado pelos seus pares mas que, por enquanto, continuam a conseguir atrair clientes devido às glórias passadas. Todos juntos, formam o grupo que fornece os nomes que surgem repetidamente, quando mais uma cidade tristemente iludida dá por si a matutar na impressão errada de que vai bater o Guggenheim de Bilbau com uma galeria de arte que parece um acidente ferroviário ou um disco voador, ou com um hotel em forma de um meteorito de 20 andares. Vemo-los em Nova Iorque e em Tóquio, e são, com apenas duas excepções, todos homens; estão no avião para Guadalajara e Seattle, em Amesterdão, e por toda a Barcelona, claro. E agora estão todos a convergir a Pequim. Cruzam repetidas vezes os caminhos uns dos outros, participam nos mesmos concursos por convite, aparecem no palco da cerimónia dos Pritzker Prize, e no júri que selecciona os vencedores dos concursos em que eles próprios não participam. A que se deve isto? Em parte, ao facto de a arquitectura ter conseguido deixar a sua marca numa cultura mais vasta, de uma forma que nunca antes alcançara: os edifícios são notados. O problema é que, dada a total estranheza de tanta arquitectura contemporânea, como podem os clientes saber que aquele particular desastre ferroviário, meteorito ou disco voador se vai transformar no marco arquitectónico que desejam, e não na pilha de lixo que eles em parte suspeitam que seja?
     A resposta é que não podem. Por isso recorrem àquela lista de 30 nomes retirados das fileiras de arquitectos com currículo. São eles que têm licença para serem esquisitos. Se fizer um contrato com um deles pode ter a certeza de que ninguém se vai rir de si. É como comprar um fato com a etique-ta certa quando não se percebe nada de moda. Mas é um processo contraproducente. Quanto mais esses poucos nomes sugam todos os projectos de monta, menos há para escolher da vez seguinte. Isto tem o efeito de transformar a arquitectura num negócio dividido brutalmente, apanhado entre a fome e a abundância. Os arquitectos, ou têm demasiado trabalho para se poderem concentrar no que quer que seja e assim destroem a sua reputação parodiando-se a si mesmos, ou têm tão pouco, que a extensão de uma cozi-nha se pode transformar no trabalho de uma vida, vivendo à míngua. Isto não é bom para nenhum dos aparentes beneficiários do processo. A atenção e o alvoroço constantes têm um efeito preocupante em alguns dos membros mais sugestionáveis do circo voador. Começam a acreditar em tudo aquilo. Não conseguem evitar mostrar desdém trocista por qualquer arquitecto exterior ao círculo encantado, desde que este não esteja presente. Mas há também a constante ansiedade em não serem ofuscados, por medo de que o seu estatuto de membros se revele temporário. É o desfecho natural da busca bizarra pelo ícone que varreu a arquitectura.
     Santiago Calatrava, o lado negro kitsch da folia e liberdade de invenção de Gehry, ainda se considera arquitecto. Na verdade, já desistiu de projectar edifícios para se concentrar na produção de ícones. Há o terminal para o Ground Zero, com as asas de vidro a erguerem-se para os céus, e o bico de aço a tocar o chão, numa desconfortável semelhança com o logótipo da American Airlines. A sua ópera em Valência parece o esqueleto descolorado de uma criatura marinha há muito morta, numa escala gigantesca. Calatrava está constantemente a revelar pontes pedonais para acrescentar a uma colecção que já inclui espécimes em Bilbau, Barcelona, Mérida, Manchester e Veneza. Numa atitude patética, continua a agarrar-se a um álibi funcional. Examinem atentamente um dos seus desenhos e, embora possa parecer uma proposta para fazer inchar uma lagosta à escala de um arranha-céus e construí-lo em betão reforçado, encontrarão uma útil etiqueta descritiva: por exemplo, “ópera”. Ou, no caso da cauda de baleia que construiu mesmo em Milwaukee, está escrito, com igual economia surreal de meios: “galeria de arte”. É claro que não existe praticamente nenhum espaço para galeria no edifício de Calatrava: está lá apenas para atrair a atenção, para lembrar ao mundo que a galeria existe. A sua abertura atrasou-se sete meses, e a construção foi tão cara que o museu teve de substituir o director e fazer cortes no pessoal. Calatrava pode ser visto como o maior beneficiário ou a principal vítima da súbita mania pela construção de ícones. Ele iniciou a sua carreira desenhando estruturas bem conseguidas, com grande economia de meios. Mas a ânsia crescente dos seus clientes condenou-o a repetir-se a si mesmo, com efeitos especiais cada vez mais ruidosos para nos distrair. Calatrava projectou o que dá pelo nome de sala de concertos, em Santa Cruz, uma cidade de 250 mil pessoas, em Teneri-fe. A descrição oficial das conchas de betão diz que se assemelham a uma onda a rebentar na costa. Os menos complacentes interpretá-la-iam como uma representação gigantesca de um véu de freira, ou considerariam mesmo que vai beber descaradamente à distante Sidney. Seja como for, trata-se de um clássico projecto “icónico”: um edifício cultural, projectado com recurso a avultados fundos públicos, com o objectivo expresso de colocar uma cidade até então obscura nas páginas das revistas de avião. Calatrava é um caso à parte, e como é sabido tem formação em arquitectura e engenharia. É uma combinação que lhe tem permitido criar uma sugestão de sentido de lógica interna na sua obra, fornecendo-lhe um álibi para o que de outra forma poderia ser visto como puro exibicionismo. Calatrava está imbuído da visão transcendental que paira em torno dos que declaram encontrar uma ordem oculta em lâminas de relva, flocos de neve e cristais de rocha. A partir dela forjou uma espécie de gótico modificado geneticamente, que é agora o tema principal da sua obra. Ou talvez se trate de Gaudí pré-fabricado, espremido ao metro como pasta de dentes saída do tubo. O arrojo da sua qualidade visual é diversão suficiente; impede os seus patronos de questionar por que razão a sua extensão da galeria de arte de Milwaukee tem de se parecer a uma cauda de baleia ou a sua ópera em Valência tem de possuir uma estrutura reminiscente de um molusco ou que ele tenha de as justificar em termos de desempenho funcional. Ou por que razão o seu telhado para o estádio Olímpico de Atenas era tão complexo que só ficou pronto dois dias antes da cerimónia de abertura dos jogos.
     O museu tem sido o tipo de edifício mais vulnerável a esta tendência, pois é o alvo mais fácil para a experimentação. Os arquitectos podem manipulá-lo, mas o verdadeiro problema surge quando se tenta fazer a mesma coisa com uma biblioteca pública ou um projecto habitacional. Quanto mais os clientes continuarem a exigir ícones, menos inclinada a obedecer estará uma nova geração de arquitectos. Os edifícios frívolos, vistosos, sofrem da lei do rendimento decrescente. A resposta inteligente dos arquitectos mais jovens com visão estratégica, tal como os do Foreign Office Architects, é conceber edifícios que, como o terminal de ferryboat, em Yokohama, não podem ser reduzidos a logótipos. E, nos EUA, o novo museu mais bem sucedido é uma velha fábrica de caixas de cartão nas margens do rio Hudson, completamente livre de constrangimentos monumentalistas. Talvez, como a art nouveau, que floresceu por algum tempo no final do século XIX, o ícone se tenha tornado ubíquo agora que está prestes a desaparecer.|

 

Tradução de João Carvalhais

 


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